Gilberto Martins é um emigrante de segunda geração: filho de madeirenses, nascido em Joanesburgo. Fala um português impecável e é cordial no trato. O Maisfutebol, por exemplo, chegou duas horas atrasado ao encontro. Gilberto Martins esperou pacientemente e durante a manhã conversou sem parar.

Falou sobretudo do Soweto, o bairro por onde a conversa se desenrolou e que conhece como as palmas das mãos. Ele que é branco, mas que aprendeu a defender a causa negra. «Aconteceu tudo por acaso», diz. «Estudava na Witts University, praticava desporto e convidaram-me a jogar pelos Orlando Pirates.»

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Foi e não se arrependeu. No maior clube do país, também ele um símbolo do Soweto, Gilberto Martins conviveu com a outra sociedade do apartheid: a sociedade de homens e mulheres escondidos num bairro periférico. Filiou-se no ANC, o partido de Nelson Mandela, actualmente no poder, e lutou na clandestinidade.

«A primeira vez que fui preso foi em 1982.». A partir daí perdeu a conta aos dias na prisão. «Os meus pais diziam-me que tantas vezes ia, que um dia não voltava. Os crimes políticos eram condenados a catorze dias sem julgamento. Cheguei a passar catorze dias na prisão, ser libertado de manhã e preso à noite.»

Hoje está bem na vida. É director-geral da província de Gauteng, que inclui Pretória e Joanesburgo. Veste-se bem e conduz um carro de alta cilindrada. No actual governo é responsável pelas obras públicas. Por isso regressa várias vezes ao Soweto: o bairro que foi símbolo da luta anti-apartheid precisa de muita coisa.

À medida que passeia pelo bairro, que não é só um bairro, é uma cidade dentro de outra cidade, vai indicando a obra feita: fui eu que construi este pavilhão, fui eu que fiz esta escola, fui eu que levantei este centro de toxicodependentes. O Soweto já não é bem o Soweto, aliás. «Antigamente não havia nada disto aqui», repete.

Não havia mesmo. O bairro foi construído a quinze quilómetros de Joanesburgo para isolar os negros. Cresceu e colou-se à cidade. Abriu-se e deixou de ser uma armadilha. «Antes só havia uma estrada e duas entradas: a norte e a sul. Quando as autoridades sentiam receio, cortavam as estradas e fechavam o bairro.»

As casas todas iguais... e as barracas

Mas fizeram mais. «Eles pensavam em tudo. As saídas do bairro tinham pontes, para ser mais fácil cortar a estrada. Todas as casas tinham saneamento, por exemplo. A filosofia deles era dar condições às pessoas para lhes tirar a liberdade.» Na altura todas as casas eram iguais, pequeninas, só de um piso e cor de tijolo.

Hoje já não: há casas para todos os feitios. Na altura também não havia barracas e agora multiplicam-se. No essencial o Soweto continua a ser um bairro proibido. «Há pessoas de Joanesburgo que nunca aqui vieram.» Quando diz «aqui» refere-se ao Soweto verdadeiro, ao Soweto profundo. Longe dos pontos turísticos.

A casa de Nélson Mandela e o outro Soweto

O Soweto de ruas estreitas, casas pequenas, caminhos de terra batida, cores mortas, gente pobre, vestida com roupas humildes, que se amontoa nas beiras e olha desconfiada. O Soweto das barracas, da gente que caminha a pé, dos miúdos que jogam em descampados, das idosas que vendem na beira do caminho

O Soweto de Baby Jake, o antigo campeão mundial de boxe «que treinava num quarto de três metros» que Ângelo Martins faz questão de mostrar. O Soweto, enfim, distante do eixo casa de Nélson Mandela-monumento Hector Peterson, que se enche de turistas e que até tem uma exibição de negros com vestes tribais.

A viagem segue por todos estes pontos, mete-se em estradas que parecem sem saída e em praças onde as pessoas se aproximam. Termina no novo estádio dos Orlando Pirates, um recinto que ficou fora do Mundial mas para o qual Gilberto Martins olha com orgulho. Afinal se não fosse o futebol não teria esta história para contar.