Liverpool, anos 80. No meio de uma cidade que vive debaixo do lema «melhor quebrar a Lei do que quebrar os pobres», cresce um rapaz numa de inúmeras habitações sociais que marcam o local.

Liverpool é lugar de guerra de uma classe operária contra a política do governo de Margaret Thatcher, por aquela altura inimiga número um dos liverpudlians.

 

 

Pelo meio de quarteirões de entulho, de prédios destruídos e outros a nascer, o futebol emerge como braço visível do que sucede. Everton e Liverpool FC lutam entre si pelos títulos, mas das bancadas sai um grito comum contra o Governo. É uma década de ouro no futebol da cidade, com nove campeonatos de Inglaterra entre 1979/80 e 1989/90; é uma década negra na vida social em Merseyside.

É neste clima que o tal rapaz, nascido a 30 de maio de 1980, vai moldar o carácter e aprimorar jogadas. No final de uma carreira gloriosa, pode dizer-se que chutou em campo como chutou na vida: atirou com força contra as adversidades e marcou golo.

Steven Gerrard anunciou o final da carreira. Estamos, obviamente, a falar de um dos maiores jogadores dos meios-campos de todo o mundo; o box-to-box por excelência foi um futebolista que fazia tudo na proporção certa: passar, roubar a bola, marcar golos…

Caiu, ou escorregou - «aquele jogo com o Chelsea foi um desastre que aconteceu na minha vida» -, mas os de Liverpool não caminham sozinhos em campo ou na vida e por isso ergueram-no e quando o deixaram já ele caminhava no meio de lendas.

Foram 710 jogos pelo clube de Anfield, foram 114 pela seleção inglesa e mais uns quantos na América, pelo LA Galaxy. Foram momentos altos, brilhantes, e baixos, terríveis. Um pouco como a cidade em que vivia quando era criança, entre a glória de golos e o desespero de não ter dinheiro no bolso.

Gerrard fez o último jogo em Anfield a 16 de maio de 2015

Abel Xavier chegou a Goodison Park primeiro do que a Anfield. «Atravessou o parque» a meio da época de 2001/02 para ir de encontro a um miúdo que se tornaria num ícone.

«Cruzei-me com Steven Gerrard quando ele ainda era muito novo, mas foi um dos jogadores mais brilhantes que encontrei na minha carreira», conta ao Maisfutebol o agora selecionador de Moçambique.

Quando era miúdo, a vida em Merseyside era difícil, uma espécie de «lei do mais forte» a imperar. Habituado a jogar com, e contra, o irmão, Gerrard batalhou para ser tão bom como os mais velhos: a ideia vai da rua para o relvado. Em cada dia de uma carreira de 19 anos!

A primeira impressão de Abel Xavier não o enganou.

«Tinha uma atitude competitiva enorme no treino. Quando o vi treinar, percebi logo que tinha muita coisa para fazer uma carreira de líder. Mesmo jovem já dava sinais disso. Há dois tipos de liderança: um capitão com voz de comando, pelo discurso, outro pela prática, pelo exemplo. O Steven Gerrard era esta última, era presente em cada treino, era quotidiana.»

As influência das raízes na carreira do antigo capitão de Liverpool e Inglaterra tem eco naquilo que Xavier dele afirma.

«É uma grande referência do futebol inglês e isso teve a ver com o facto de ele querer ser marcadamente inglês, assumir-se como tal. Aliás, ele não é só inglês, é um scouser! É uma coisa que enche de orgulho as pessoas de Liverpool. É uma zona de trabalhadores, discriminada. Gerrard assumiu-se como tal, personalizou isso mesmo, personalizou-se como uma afirmação da classe operária. O futebol em Liverpool teve uma ligação enorme a isso, não passava só por ser-se do Liverpool ou Everton, passava também pelo bairrismo.»

No mesmo ano em que arrancou para o último título de campeão inglês e perdeu 96 adeptos em Hillsborough, o Liverpool descobriu um rapaz de nove anos a jogar no Whiston Juniors. Levou-o para a academia e deu-lhe um contrato profissional quando ele chegou à maioridade.

Duas FA Cup, três Taças da Liga, uma Supertaça Inglesa, uma Taça UEFA, uma Supertaça Europeia e uma Liga dos Campeões

Antigo jogador e diretor da academia, Steve Heighway revelou que aos 14 anos sabia que Gerrard, e Michael Owen, iam ser jogadores de topo. Mas a carreira do médio esteve quase para não começar.

«Tive um incidente quanto estava a jogar num descampado. Havia muito lixo e muita relva alta. A bola ia a sair e eu tentei pará-la com o pé. Acertei num ancinho e as dores foram imensas. Tive medo de perder o dedo do pé. Os médicos decidiram contra a amputação e optaram por tratamento. Felizmente, recuperei.», Gerrard em LFCtv, 60 minutes.

Estreou-se depois como profissional em novembro de 1998.

«Todos os suplentes receberam aplausos quando Gérard Houllier nos mandou aquecer. Bom, quase todos. Quando corri em direção ao Kop, quase que ouvia os adeptos dizer: «Quem é este magricelas do c******?», Gerrard em My Autobiography

Como escreveu o The Guardian, foi a última vez que o Kop ignorou Gerrard.

A partir daí, o miúdo de Whiston arrancou para uma carreira incrível. Marcou golos fantásticos, chegou a capitão do clube que sempre amou.

E jogou sempre em memória do primo, Jon-Paul Gilhooley, que com dez anos, mais do um que Gerrard na altura, foi a vítima mais jovem do desastre de Hillsborough.

«Joguei por ele. Foi difícil saber que um primo tinha morrido. Ver a reação da família dele levou-me a ser o jogador que hoje sou», Gerrard, Sky News.

Steven Gerrard tem ainda a amargura de nunca ter sido campeão inglês. Mas deu ao mundo uma das noites mais mágicas da história do futebol.

Em Istambul, em 2005, foi o capitão do milagre. Só mesmo os adeptos do Milan, no planeta inteiro, têm o direito de não se arrepiar com isto.

Usar a camisola dos Reds tornou-o um alvo dos adeptos de Manchester United e Everton. Mas a lealdade a um só clube tem reconhecimento entre muitos fãs.

«Também vi muitos adversários a aplaudi-lo. Não é por se jogar num clube rival que não se deve enaltecer um jogador. Há duas formas de se fazer carreira: passar por vários clubes em busca de títulos, ou fazer como ele um percurso de quase 20 anos no mesmo clube, o que é significante», sublinha Abel Xavier.

Steven Gerrard tornou-se capitão de Inglaterra em 2010; fez 114 jogos pela seleção, mas foi eliminado em várias ocasiões por Portugal, nomeadamente 2000, 2004 e 2006

José Mourinho tentou contratá-lo para o Chelsea, mas Gerrard não foi. «Mantive-me fiel às pessoas que mais me importam. Não persegui dinheiro, não persegui glória. Estou aqui com esse lamento de nunca ter ganho a Premier League, mas ao mesmo estou muito satisfeito com a minha lealdade», disse na entrevista de final de carreira à BT Sports. Quando saiu, foi para o outro lado do Atlântico, mas é com a camisola encarnada que será sempre recordado.

«Será sempre referência do clube e um dia, tenho a certeza, vai voltar noutras funções», diz Abel Xavier. 

Claro, porque os de Liverpool reconhecem sempre os seus. E nunca os deixam caminhar sozinhos.