«Não chuta com o pé esquerdo, não cabeceia uma bola, não faz desarmes e não marca muitos golos. Tirando isso, não é mau».

A frase é de George Best, predecessor de David Beckham numa ilustre galeria de números 7 do Manchester United. E resume no essencial a pergunta que sempre o acompanhou fora de Inglaterra: «Ele justifica mesmo todo o alarido?». A resposta foi sempre ambígua, em grande parte porque o seu indiscutível talento futebolístico esteve sempre um passo atrás da imagem de poster boy e estrela pop.

Durante vários anos, entre a segunda metade da década de 90 e os primeiros anos do século XXI, o agora retirado David Beckham foi a estrela número um do futebol mundial. É pelo menos duvidoso que alguma vez tenha sido o melhor.

Uma Liga dos Campeões, seis títulos de campeão inglês, e troféus de campeão de Espanha, Estados Unidos e França, a juntar a 115 jogos pela Inglaterra, com passagem por três Mundiais. O palmarés impõe respeito, mas não rivaliza com o dos melhores do seu tempo. E está longe, até, do de alguns companheiros do Manchester United, como Ryan Giggs, Paul Scholes, ou Gary Neville, parceiros de uma incomparável colheita da Academia, nos anos de 1992 e 93.

Os melhores cruzamentos do futebol europeu e os livres diretos com selo de garantia na parábola, a par de um espírito competitivo que cimentava uma liderança natural, foram os seus melhores argumentos em campo. Mas foi fora dele, como personalidade mediática construída ao pormenor, que rompeu barreiras e abriu caminho a um novo tempo: Beckham foi o primeiro metrossexual do planeta futebol, pegando na tradição de playboy, herdada de Best e outros fenómenos dos anos 60 e transformando-a em carreira paralela, altamente lucrativa.

À medida que os episódios do casamento com Victoria, uma das Spice Girls, passou a ocupar mais espaço nos media do que as suas proezas em campo, a relação com o mentor Alex Ferguson deteriorou-se de forma irremediável. Apesar dos esforços de Carlos Queiroz, o ponto de rotura aconteceu em fevereiro de 2003, com o célebre incidente da bota pontapeada por Ferguson em direção à sua cara. Nesse verão, Beckham trocou Old Trafford pelo Bernabéu, a troco de 35 milhões. Uma contratação com tanto - ou mais - de comercial como de desportiva, já que a sua presença ajudou a levar a marca merengue para os mercados asiático e, principalmente, norte-americano.

Após quatro temporadas de protagonismo constante, mas sucesso moderado (apenas um título de campeão), em 2007 Beckham e o Real fecharam o ciclo. O Golden Boy optou pelo estatuto de messias da Ligasnorte-americana, MLS, e aí passou os cinco anos seguintes, cada vez mais estrela, cada vez menos jogador - embora com pontuais lampejos de uma classe indiscutível.

Com as receitas de publicidade a quadruplicarem o que ganhava em prémios e salários, Beckham tornou-se uma marca global, e o rosto de várias campanhas e organizações, entre elas a dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Ao adeus a Los Angeles, onde sempre flirtou com a indústria do show business seguiu-se uma curta passagem pelo PSG, onde abdicou de salário e contribuiu em nove jogos para o título ganho por uma equipa ultramediática, bem ao seu estilo.

Por força dos contratos publicitários com marcas como a Adidas, a H&M, Samsung e a Burger King, Beckham era ainda, em 2012, o futebolista mais bem pago do mundo, à frente de Cristiano Ronaldo e Messi. O seu valor global estava avaliado em 35 milhões de euros, dos quais só uma ínfima parte provinha diretamente do futebol. No mesmo mês das despedidas de Ferguson, e de companheiros de aventura como Paul Scholes e Michael Owen, o adeus anunciado nesta quinta-feira vira uma página. E permite ao ex-futebolista David Robert Joseph Beckham assumir, aos 38 anos, um estatuto antigo: o de estrela global que, entre outras coisas, também teve um passado de craque.