A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris, o Maisfutebol lança uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. São 54 até agora, ainda com várias modalidades por definir. Estas são as suas histórias e desta vez são duas, a contar o percurso de duas atletas, rivais e amigas, que competirão na mesma disciplina, o lançamento do disco.

Liliana Cá dedicou a medalha de bronze nos Europeus de Roma, no início deste mês, aos dois filhos. Que estavam em casa, a acompanhar a sua prova. E nem perceberam logo em que lugar tinha ficado a mãe. Na transmissão televisiva não passou toda a final do lançamento do disco, onde Liliana esteve em segundo lugar até perto do fim. «O mais velho viu que eu estava em segundo. O mais novo é que percebeu que eu fiquei em terceiro. Então tiveram essa discussão, um dizia que eu fiquei em segundo, outro em terceiro», conta a atleta portuguesa, com um sorriso.

No regresso a casa, teve direito a dois abraços especiais. «Eu cheguei super tarde, mas eles aguentaram até eu chegar. Deram-me um abraço e foram para a cama.»

Esta é uma segunda vida de Liliana Cá no atletismo. Ela deixou a modalidade em pausa durante um longo período, enquanto se dedicava aos filhos, que têm agora 12 e oito anos. Agora, aos 37 anos, está a conseguir melhores resultados que nunca. Depois do bronze de Roma, seguem-se os Jogos Olímpicos de Paris, onde competirá ao lado de Irina Rodrigues, a outra representante portuguesa na disciplina. 

Do basquetebol às corridas, antes dos lançamentos

Para trás fica um percurso que passou por vários desportos no Barreiro, onde Liliana nasceu e cresceu. Primeiro no desporto escolar, depois no basquetebol, e a seguir no atletismo, que começou nas corridas na rua. «Joguei alguns desportos na escola e o basquete foi onde fiquei mais tempo. Até acabámos por fazer uma equipa, fomos concorrer a um torneio 3x3 que havia no Parque das Nações e por acaso conseguimos ganhar um troféu.»

O atletismo surgiu por sugestão de uma vizinha. «Ela corria e como nós andávamos sempre na rua a fazer corridas ela convidou-nos para experimentar. Fui eu e mais dois dos meus irmãos mais velhos. A partir daí, continuámos até os meus irmãos desistirem e eu ficar sozinha.»

Passou por várias disciplinas no atletismo, da corrida aos saltos. «Aos 10, 11 anos é que comecei a ter mais jeito para os lançamentos. Depois comecei a ficar um pouco mais pesada para correr e comecei a ficar com aquela preguiça», ri-se. «Como vi que tinha bem mais jeito para os lançamentos acabei por ficar ali. O meu treinador comparava as marcas e era nos lançamentos que eu me destacava mais em termos nacionais. Então foi ali que começámos a apostar mais.»

Os filhos e a vida em Inglaterra longe do atletismo

Coincidindo ainda com a reta final da carreira de Teresa Machado, a grande referência nacional da disciplina, conseguiu cedo resultados internacionais, ainda como juvenil, júnior e sub-23, além de dois títulos de campeã nacional. Mas em 2011 decidiu parar.

«Foi numa altura que andava a ver bastante injustiça em termos de escolha de atletas. Eu fazia as marcas e muitas das vezes não era eu quem ia competir. Então comecei a afastar-me um pouco. E nessa pausa calhou engravidar. Ainda competi até aos cinco meses, salvo erro, que era para acabar o contrato com o Sporting. Assim que o contrato acabou, já faltavam poucos meses para dar à luz e então juntei o útil ao agradável e fiz uma pausa psicológica», sorri.

O regresso foi adiado por motivos familiares. «A minha irmã estava em Londres e precisava da ajuda da minha mãe porque tinha ficado doente e também tinha os filhos dela lá. A minha mãe teve de ir para lá para ajudar. E não me queria deixar aqui sozinha, porque eu tinha sido mãe pela primeira vez. Fui com ela, porque eu também sentia que, sozinha, se calhar não ia conseguir dar conta do recado.»

Ainda se juntou a um clube em Inglaterra, mas não era o nível de trabalho a que estava habituada. Também teve um regresso curto a Portugal, numa ligação ao Benfica, antes de regressar a Londres por mais quatro anos. Nessa altura desligou-se por completo do atletismo. Estudou e trabalhou. «Fui à escola, estive a fazer um curso de inglês. E trabalhei um bocadinho nas limpezas para poder estudar. Depois do primeiro filho ainda pensei em voltar ao atletismo, mas depois do segundo já não tinha essa ideia.»

O encontro num centro comercial que voltou a mudar tudo

Regressou a Portugal em 2016 e foi um encontro absolutamente casual com o treinador Luís Herédio, num centro comercial, que voltou a mudar a sua vida. «Ele era meu amigo desde que eu treinava com o meu primeiro treinador, o João Ferreira. Encontrei-me com ele no shopping, falámos um bocadinho e ele disse: ‘Volta, que isto está mau, só temos a Irina (Rodrigues) e está a lançar sozinha, basicamente. Voltas, vais brincando. Eu arranjo um clube que te pague, assim não ficas parada e sempre ganhas algum.’»

Foi com Luís Herédio que retomou a carreira. Numa outra fase da vida, voltou melhor do que antes. «O meu primeiro treinador dizia sempre que eu podia ser muito melhor do que aquilo que eu fui. Porque na altura eu não tinha muita maturidade, se calhar numa semana treinava duas, três vezes, não mais que isso. Acho que não lancei mais naquele tempo por falta de maturidade», reflete Liliana Cá. «Mas depois com o Herédio, como já tinha filhos, como já tinha algum encargo atrás, já não podia andar na vida boa, foquei-me mais», ri-se.

O recorde com 23 anos e o quinto lugar em Tóquio

Tinha 30 anos quando voltou, e quando reiniciou um percurso que a levou em 2021 a bater o recorde nacional, uma marca com 23 anos que pertencia a Teresa Machado, e ao apuramento para os Jogos Olímpicos.

Em Tóquio, terminou no quinto lugar. E poderia ter ido ainda mais longe, se não tivesse sofrido uma queda a meio do concurso, marcado pela chuva. «Eu estava bem e da forma como preparei a competição, acho que ia conseguir fazer muito mais. Só que infelizmente caí no meu segundo lançamento e só o primeiro contou, basicamente», recorda, a contar também que as condicionantes dos Jogos de Tóquio ajudaram a afastar algum nervosismo na estreia olímpica. «Por norma, por serem os Jogos, a gente fica com aquela ansiedade extra. Mas acho que o que me ajudou foi não haver público, então eu senti-me normal.»

«Nas grandes competições não costumo falhar»

Seguiram-se mais finais, o sexto lugar nos Mundiais de 2022 e o oitavo em 2023, de novo já como atleta do Sporting. Como ela diz, não costuma falhar em grandes competições.

«A partir dali foi um pouco mais fácil porque ganhei mais confiança, senti que era capaz de fazer coisas boas», nota, destacando o papel do seu treinador. «Ele trabalhava muito o meu psicológico, apesar de eu ser forte. Por norma nas grandes competições eu não costumo falhar. Mas ele trabalha sempre em caso de falha. Muitas vezes havia competições em que o início era super mau, mas ele não demonstrava que tinha ficado afetado. Dizia ‘É normal, isso acontece’. Que era para eu ir confiante para o segundo lançamento. Só no final da competição é que ele me dizia que se sentiu mesmo nervoso, que nem sabia o que me ia dizer.»

Da qualificação olímpica à medalha em Roma

Para os Europeus de Roma, Liliana Cá partiu a apontar ao pódio. «Estávamos a pensar na medalha. Mas há sempre a qualificação, que às vezes corre menos bem. A partir do momento em que a eliminatória correu bem fomos apostando um pouco mais. Quando fiquei entre as oito primeiras aí sim, já foi mesmo focar na medalha.»

De caminho Liliana Cá conseguiu em Roma a marca de qualificação olímpica, assegurando sem margem para dúvidas a presença em Paris. «À partida já estaria qualificada pelo ranking, por causa dos pontos. Só que eu e o meu treinador concordamos que é melhor ir pela marca, vamos sempre à procura da marca. Já não estava muito longe nos treinos e sabíamos que a qualquer momento podia sair. Então, foi juntar o útil ao agradável.»

A medalha de Roma foi a concretização, como disse, de um «sonho de criança», subir ao pódio numa grande competição internacional. E viveu-o ao lado de Irina Rodrigues, que terminou no quarto lugar. As duas partilham há anos os mesmos palcos e construíram uma amizade, que ajuda muito nestes momentos, diz Liliana Cá.

Liliana e Irina, juntas «contra o mundo»

«Quando a gente vai para fora, sentimos que somos nós as duas contra as outras. E o facto de vermos assim já tira um pouco de pressão. Se formos como rivais, além de sentirmos pressão com as outras, vamos sentir pressão com a nossa companheira de seleção. E isso é desgastante, porque que é uma pessoa com quem vamos estar 24 sobre 24 horas - estamos sempre no mesmo hotel, temos reuniões juntas, temos de nos cruzar constantemente. Se nos vemos como amigas, então a pressão já não começa ali. Nós damo-nos super bem e eu gosto muito dela. Eu digo sempre à Irina: ‘Não te vejo como minha rival, tu és minha amiga.’ Somos nós as duas contra as outras. Depois a que se destacar melhor, OK. O importante é nós conseguirmos bater as outras.»

Agora, Liliana Cá procura recuperar forças para Paris. Antes de mais, do desgaste que representou a luta pelas medalhas no Europeu. «O corpo depois de atingir um objetivo quer ir um pouco abaixo, mas agora estamos a tentar voltar à rotina, para ver se o cansaço desaparece um pouco e a rotina do treino volta.»

Paris é o grande objetivo: «É ali que queremos fazer história»

Os Jogos Olímpicos são o grande objetivo, diz. «Roma era mais uma competição para nos testar, mas o meu foco sempre foi Paris. Graças a Deus, Roma correu-me bastante bem, mas o foco continua a ser Paris. É nos Jogos Olímpicos que a gente quer sempre brilhar. É ali que queremos fazer coisas boas e fazer história.»

Ela acredita que pode voltar a fazer um bom resultado. «Ali a competição tem um grande nível e precisamos de estar a 100 por cento para conseguir ir às medalhas. Eu acredito que à final irei chegar. Para as medalhas, tem de ser mesmo 100 por cento e aquela força extra. Mas nada é impossível.»

Se na estreia em Tóquio pode ter ajudado não haver público, em Paris os Jogos voltam à normalidade. E Liliana Cá acredita que desta vez o ambiente até pode dar motivação extra. «Com público e tudo o mais, eu acho que vai ser algo novo, mas acredito que vai ser aquilo de que a gente precisa. Porque aqui em Portugal não temos assim muito apoio, não temos quase público nenhum. Somos nós a puxar por nós. Então, acho que ali vai mexer um pouco connosco. E como já estamos habituadas aos palcos mundiais, vai-nos dar aquele boost que a gente precisa que é para podermos sentir-nos mais importantes.»

Os planos para o pós-carreira… e talvez umas lágrimas em Paris

Liliana Cá gosta de viver «um dia de cada vez», como ela diz. Ainda não definiu um momento para terminar a carreira, embora já tenha planos para o que fará a seguir, com o apoio de Luís Monteiro, presidente da Associação de Atletas Olímpicos. «Está tudo a correr bem, então enquanto estiver a correr bem eu vou continuar a competir. Mas tenho falado com o Luís Monteiro, que está a orientar os atletas para o pós-carreira. Ele está a ajudar-me bastante naquilo que eu quero seguir. Estou a pensar em ser mental coach e depois por aí seguir outras áreas, para mexer com o psicológico das pessoas», sorri. «Agora é só esperar e metermos em prática para que dê tudo certo.»

A curto prazo, também tem no horizonte uma viagem à Guiné Bissau, a terra dos seus país e onde nasceram duas das suas irmãs, antes de a família se mudar para Portugal. «Sei que tenho lá família, mas não tenho contato com eles. Os meus pais faleceram e a gente não conheceu ninguém da família de lá. Então, nunca tive aquela curiosidade de ir, porque não sei onde ir, quem conhecer. Mas estou a planear talvez em setembro ir com o meu namorado, que ele é de lá.»

Antes disso, há os Jogos Olímpicos. Liliana Cá imagina como seria bom voltar a terminar a festejar ao lado de Irina Rodrigues. Mesmo com algumas lágrimas pelo meio. «Era ótimo», sorri. «A Irina é bastante chorona. Eu ganho, ela chora. Ela ganha, ela chora. Eu fico sempre a rir. Às vezes pode cair uma lágrima, mas quase ninguém dá conta. Eu não costumo chorar. Menos quando é algo relacionado com os meus filhos ou isso. Aí já sou manteiga.»

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