A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris, o Maisfutebol lança uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. São 54 até agora, ainda com várias modalidades por definir. Estas são as suas histórias e desta vez contam o percurso de duas atletas, rivais e amigas, que competirão na mesma disciplina, o lançamento do disco. 

Numa semana Irina Rodrigues estava a fazer turnos no Hospital de Santo Espírito, na Ilha Terceira, na semana seguinte estava a disputar a final do lançamento do disco nos Europeus de atletismo. Agora, fará outra pausa na medicina para estar em Paris. Ela e Liliana Cá, as duas portuguesas na disciplina nos próximos Jogos Olímpicos. Uma conquistou o bronze nos Europeus já neste mês de junho, a outra foi quarta. Irina ficou com a «medalha de chocolate», mas ela deixou-a muito feliz. Antes de mais, porque chegou depois de um ano difícil, que a levou a mudar por completo a sua vida.

Tinha terminado uma longa ligação ao Sporting e viu-se numa encruzilhada. Foi então que decidiu mudar-se para os Açores, onde está desde o início do ano. 

«Neste momento sou atleta individual, não tenho clube, logo não tenho remuneração de apoio na prática desportiva. Também tinham acabado as verbas do apoio olímpico em dezembro e havia a necessidade de fazer um bom resultado para poder reintegrar o projeto olímpico. Então, tomei a decisão de vir viver para a Terceira para poder ter apoio presencial do meu treinador, não sabendo ao que vinha. Para poder subsistir nos primeiros meses tinha mesmo de trabalhar. E candidatei-me ao internato. Comecei este ano a trabalhar como médica interna de formação geral», conta Irina Rodrigues ao Maisfutebol. «Achei que era o melhor para poder manter os dois mundos. Ainda para mais era ano olímpico.»

Havia uma dose de incerteza na decisão. «Além de não saber se ia ser possível estar nos Jogos Olímpicos, era também a minha estreia a trabalhar como médica.»

Mudança para os Açores, entre a medicina e o treino: «Melhor decisão que tomei»

Passou então a ter uma rotina onde só cabe trabalho e treino. «Tenho um trabalho das 8:30 às 4:30. Só posso treinar a seguir. Por isso, o meu treino acabou por ser sempre de acordo com os horários de trabalho. Agora a grande mais-valia é o facto de ter o meu treinador todos os dias presente. E isso, além de criar um compromisso de ir aos treinos e ter sempre um apoio técnico, também me dá maior qualidade de treino. Foi a melhor decisão que eu tomei.»

Os resultados reforçam essa ideia. Em março deste ano, Irina Rodrigues bateu o recorde nacional. Em Leiria, a jogar em casa, lançou o disco a 66,60m, então a melhor marca mundial do ano, que lhe valeu o ouro na Taça da Europa de lançamentos e o apuramento direto para os Jogos Olímpicos. Aos 33 anos, foi a quarta qualificação olímpica da sua carreira.

«Nem todos associam que aquela médica grande e alta é atleta»

No hospital, Irina Rodrigues não passa despercebida. Mas nem todos sabem da sua dupla carreira. «Muitos dos meus colegas de trabalho, tanto os médicos, como os enfermeiros ou os auxiliares, já sabem. Os doentes, alguns sabem, outros acho que não. Claro que o meu tamanho chama um pouco a atenção, mas acho que nem todos associam que aquela médica alta e grande é atleta», ri-se.

Essa mulher alta e grande dedicou-se ao lançamento do disco, ainda adolescente, precisamente pelas suas características físicas. Mas não foi por aí que Irina, natural de Leiria, se iniciou no desporto. «O atletismo começou aos 13 anos quando eu saí da natação por uma lesão do ombro. Eu gostava muito de nadar, mas tive uma tendinite que começou a ficar com alguma cronicidade. A solução para deixar de ter dores quando nadava era desistir da natação ou operar. A minha mãe achou que eu era demasiado nova para ser operada. Estive ali algum tempo sem fazer nenhum desporto, e depois ela lembrou-se dos convites que eu tinha tido para os corta-matos da escola. ‘E se fosses experimentar atletismo?’ Eu decidi experimentar. E fiquei por lá.»

«Eu tinha a expectativa de ser sprinter, porque eu gostava muito de ver as provas de velocidade. Só que no primeiro dia disseram logo que eu tinha de experimentar lançamentos. Ao segundo dia, quando cheguei disseram que já era muito alta e tinha características físicas que me poderiam levar longe. E fiquei logo no lançamento do disco.»

Da natação às tardes a ver desporto na televisão, o sonho cumprido

Começou rapidamente a obter resultados. «Passados três meses bati o recorde nacional. Acho que o facto de ter começado a fazer logo uma disciplina em que já tinha algum talento à partida foi-me sempre motivando e dando a energia e a garra para continuar ligada ao desporto e motivada para treinar.»

Ser atleta de alto nível é, diz, um sonho de criança. «Em miúda eu ficava tardes a ver a RTP 2, porque adorava ver desporto. Quando tinha cinco, seis anos, o meu sonho era ser uma dessas atletas que aparece na televisão. Estar nos Europeus e nos Mundiais ou nos Jogos Olímpicos.»

E chegou lá. Somou medalhas em vários escalões jovens, somou títulos nacionais, conta seis presenças em Mundiais e outras tantas em Europeus ao longo de 20 anos de carreira.

Fazer o curso de medicina «devagarinho», em nome da carreira de atleta

E pelo meio continuou a estudar. Entrou em medicina na Universidade de Coimbra, assumindo desde logo que iria tentar conciliar o curso com o desporto, nem que para isso demorasse muito mais a conseguir o canudo. «Quando entrei para a faculdade com 18 anos também já era atleta profissional, digamos assim, já era remunerada para fazer atletismo. Sempre disse à minha mãe que ia demorar muito tempo a fazer o curso, porque queria ser a melhor atleta que conseguisse neste curto espaço de tempo. Quando tiver 66 anos, eu já não posso ser atleta, mas posso ser médica. Por isso decidi que ia fazendo devagarinho, de forma que me possibilitasse chegar aos palcos onde queria chegar.»

Isso implicou por exemplo, a partir de certa altura, treinar à distância com Júlio Cirino, o seu atual treinador, que já vivia nos Açores. «Depois dos Jogos Olímpicos de 2016 eu senti que tinha de mudar de apoio técnico. Ele dava-me apoio à distância e essa era a opção que me permitia continuar a estudar em Coimbra. Eu mandava-lhe os vídeos, ele dava-me feedback. Isto tem as suas dificuldades, nem sempre temos ali um feedback tão rápido, mas sou-lhe muito grata porque foi o que me permitiu continuar a conciliar a minha carreira académica com a carreira desportiva.»

Nem sempre foi fácil e a tentação de desistir chegou várias vezes. «Acho que passa pela cabeça de todos os atletas em algum momento, quando corre menos bem. Quanto aos estudos, não é que eu pensasse em desistir, mas eu terminei o meu curso muito tarde. Estou muito atrasada comparando com os alunos e agora médicos da minha idade. Mas sempre foi calculado. Eu sempre soube que eu ia acabar o curso mais tarde e nunca quis desistir da medicina. Mas da parte desportiva, houve sempre fases.»

Quando viu fugir «o tapete debaixo dos pés»

«Quando temos uma grande lesão nós pensamos se vale a pena continuar. Ou então quando ficamos sem qualquer tipo de verba que nos permita viver para o atletismo. Quando fiquei sem clube senti que me tiraram um bocado o tapete debaixo dos pés. Não sabia como é que iria continuar a praticar atletismo. Porque eu tenho as minhas contas para pagar, como qualquer pessoa, e se não tiver apoio fica difícil.»

Nessa altura sobravam perguntas na sua cabeça. «O que é que eu faço agora? Continuo a treinar? Vou acabar o curso o mais rapidamente possível, porque é isso que me vai trazer os honorários?» Mas não parou. «Como já tinha o meu processo de preparação para Paris a decorrer, e eu gosto de treinar, fui continuando a fazer as coisas devagarinho.»

«O ano passado foi muito difícil, passei o ano quase todo sozinha. Quando fui ao Mundial foi assim algo inesperado. Porque competi pouco, rendi pouco, porque queria mesmo terminar o sexto ano de Medicina», recorda. Depois, tudo se alinhou. «Acho que este ano compensou tudo aquilo que passei. Percebi que afinal não precisava daquilo tudo que eu pensava que era necessário para formar um atleta de elite. Isso trouxe-me muita confiança e trouxe um sabor muito especial de me reerguer depois de uma fase má.»

Foi a gerir dois mundos que chegou ao mais alto nível na modalidade, numa disciplina onde Portugal tem dado cartas. Desde logo com Teresa Machado, a atleta que foi a grande referência feminina nos lançamentos, que somou quatro presenças em Jogos Olímpicos e deteve durante mais de 20 anos o recorde nacional do disco, superado por Liliana Cá em 2021 e agora por Irina Rodrigues. As duas mantêm essa linhagem.

O abraço de Roma a Liliana Cá: «É das pessoas que mais me inspiram»

«Aquilo que a Teresa Machado fez, com o meu treinador, foi incrível, para mais numa altura em que não havia acesso à informação como há hoje», diz Irina Rodrigues. «A Liliana chegou mais tarde e também tem um histórico de medalhas desde muito jovem. Apesar de ter parado alguns anos, o talento dela é inegável. E depois apareci eu e fui-me mantendo por cá. Acho que termos duas lançadoras de bom nível deve-se ao facto de continuarmos a treinar cá e sabermos o que é preciso para que as coisas corram bem. Acima de tudo, é mesmo não desistir, é continuar até que os resultados venham.»

No Europeu deste início de junho, Irina Rodrigues confirmou o bom momento que atravessa, a culminar com a presença na final e com o quarto lugar, a sua melhor classificação de sempre na sexta participação na competição.

Liliana Cá conseguiu o bronze nessa final, num concurso especial para as duas atletas portuguesas. As imagens de ambas a incentivarem-se durante a competição retratam uma relação de amizade, diz Irina.

«A Liliana é uma amiga que partilha os mesmos palcos do que eu. Fiquei muito feliz por ela, porque sei o quanto ela merece a medalha, pelos anos todos que trabalhou e pelo que ela investe no desporto. É das pessoas que mais me inspiram no atletismo português, porque é uma excelente pessoa», diz Irina. «Eu gosto de ver os outros brilhar e isso não vai fazer com que o meu brilho desapareça. Eu também tenho os meus momentos, mas ao ver que os outros se estão a dar bem, então quando são meus amigos, fico muito feliz por eles. Pelo menos eu estou no desporto assim. Como é óbvio, toda a gente quer ganhar. Mas eu não fico triste com o sucesso da Liliana. Nunca. Gosto muito de competir com a Liliana quando estamos lá fora, gosto muito de ir à final com ela, porque sinto que há ali um apoio e que ambas queremos dar-nos bem.»

A «medalha de chocolate» que soube a vitória

Para Irina Rodrigues, o quarto lugar de Roma foi, de qualquer modo, uma vitória. «Fiquei no lugar do cão, um lugar que ninguém gosta. Eu chamo-lhe a medalha de chocolate, porque acho que é uma forma carinhosa. Mas a verdade é que para mim um quarto lugar é muito honroso. OK, não estive no pódio, mas é incrível. Não tira de todo o mérito que foi para mim chegar ali, tendo em conta todo o meu contexto.»

«Lá está, eu não sou atleta profissional, sou semi-profissional. Eu tenho dois trabalhos, tenho o treino, tenho o atletismo e tenho a medicina. Por exemplo, eu não tenho muitas vezes horário para fazer recuperação na fisioterapia. Isto vai condicionar a forma como eu me adapto aos treinos e a minha performance mais tarde. Eu não vim para este campeonato, digamos assim, com as mesmas armas que as minhas colegas. Eu não consigo treinar duas vezes por dia, por exemplo. Portanto, estou orgulhosa do que estou a fazer.»

Paris e o regresso à «aldeia dos super heróis»

Agora vêm aí os Jogos Olímpicos. Para Irina Rodrigues, será a quarta presença, embora numa delas não tenha chegado a competir. A estreia foi em Londres em 2012, quando terminou no 32º lugar. Apurou-se para o Rio 2016, mas uma lesão grave contraída já na aldeia olímpica impediu-a de entrar na qualificação. Voltou em Tóquio, onde foi 25ª. Para já, saboreia a oportunidade de voltar a viver essa experiência.

«Lá está, estou a viver um sonho. O facto de eu poder ainda estar a representar o meu país é viver um sonho», diz. «Quando entramos numa aldeia olímpica, onde estão os melhores dos melhores de todas as modalidades do mundo, é um sentimento de pertencer a algo que já tem uma história muito antiga. Uma vez uma colega disse que entrou na aldeia dos super-heróis. E eu achei aquilo bonito. Estamos ali no meio dos nossos maiores ídolos. É muito giro ver e confraternizar com os atletas que admiramos e defender a nossa bandeira. É muito bom viver o espírito olímpico.»

Quanto aos objetivos, Irina Rodrigues diz que a prestação no Europeu não muda as suas expectativas. «É a minha quarta participação e o meu sonho é ir a uma final olímpica. E quero perseguir esse sonho. Quero muito, acima de tudo, fazer melhor classificação do que nas edições anteriores. E espero estar com a felicidade com que encarei os Europeus. Espero honestamente sentir e viver os Jogos Olímpicos da forma que vivi este Europeu em Roma.»

Se no fim puder festejar com Liliana Cá, melhor.

«As pessoas não têm noção de quão difícil é estar nos Jogos Olímpicos»

«Claro, é um sonho lindo e eu adorava que uma de nós ganhasse uma medalha. Isso era mesmo brilhante», observa. «Mas também temos de ter noção que, face às condições que nós temos comparando com os outros países, realisticamente não é fácil. Às vezes parece que nos pedem medalhas como se fosse ir ali ao supermercado buscar um pacote de bolachas. Eu acho que as pessoas ainda não têm bem a noção do quão difícil é uma pessoa estar nos Jogos Olímpicos. Só estar. Quanto mais ganhar uma medalha. Há muitos atletas que trabalham imenso, investem imenso numa participação olímpica e não conseguem. E eu vou para os meus quartos Jogos.»

«É difícil mesmo. Eu acho que particularmente este ano vou desfrutar muito, porque lá está, estou a trabalhar com médica, não tenho patrocínios, não tenho clube, tenho só mesmo a minha vontade e do meu treinador de querer chegar longe e muito trabalho acumulado. Estar ali já é uma grande vitória.»

Irina Rodrigues ainda não decidiu quanto tempo mais prolongará a carreira de atleta. Ainda terá de fazer a especialidade de medicina, ela que está inclinada para a medicina geral e familiar, e não sabe se será possível continuar a compatibilizar tudo.

«Vou tomar essa decisão no final do ano. Já tenho 20 anos de carreira e também tenho de pensar no meu futuro e nos pós-carreira desportiva. Não sei como vai ser. Até agora foi possível conciliar, mas se eu quiser entrar num internato de especialidade, vai ser ainda mais difícil estar bem nos dois mundos. A carreira dual não é fácil e já são muitos anos a viver só para o desporto», observa. «Eu sinto que este ano perdi muito do meu lado social, de lazer, porque é literalmente trabalhar, treinar, ir para casa comer e descansar. Os meus dias são isto. Sinto que também tenho que pensar um pouco mais naquilo que eu quero. Ainda não tomei uma decisão, mas é algo que irei pensar mais tarde. Depois de Paris.»

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