O regresso ao ativo de Paulo Bento, por acontecer num país nada habitual para treinadores portugueses, apanhou meio mundo de surpresa. O antigo selecionador nacional assinou pelo Cruzeiro de Belo Horizonte, com o objetivo de devolver o clube ao topo do futebol brasileiro.

Ver um treinador português atravessar o Atlântico para prosseguir a carreira não é, de facto, comum. Paulo Bento é um dos poucos da história que arrisca este passo na carreira e é, inclusive, dos mais conceituados.

Aliás, o único que pode ombrear com o estatuto de Bento é outro antigo selecionador nacional mas em tempos muito diferentes. Falamos de Cândido de Oliveira, figura incontornável dos primórdios do futebol luso. Treinou o Flamengo em 1950, ano em que o Brasil recebeu o primeiro Mundial da sua história.

A experiência foi curta. Apenas 13 jogos e o regresso a Portugal. De facto, na altura, já era visto como um treinador de topo, para muitos o melhor português. Foi o selecionador nacional na primeira grande competição internacional de seleções em que Portugal participou, os Jogos Olímpicos de 1928, em Amesterdão. Foi, também, bicampeão nacional, ao serviço do Sporting, embora tenha sido do outro lado da segunda circular, no Benfica, que começou a jogar futebol. Com os dois títulos no bolso partiu, então, para o Brasil, onde, como se disse, a aventura não correu tão bem como desejaria: ganha apenas quatro dos 13 jogos que faz e é despedido após uma derrota frente ao Botafogo, em casa, por 4-2.

Contudo, embora seja o caso mais conhecido, não foi o primeiro. Antes de Cândido de Oliveira, já os brasileiros conheciam outro técnico nascido em Portugal, este com bastante mais sucesso. Falamos de Joreca, desconhecido para a maioria dos portugueses, certamente. 

Conheça melhor a história de Joreca

Foi tricampeão Paulista pelo São Paulo na década de 40 e orientou a seleção brasileira, aí com bem menos sucesso: apenas dois jogos, antes de ceder o lugar a Flávio Costa, que treinaria o FC Porto.

De lá para cá, e antes do caso recente de Sérgio Vieira, no Ferroviária, que até teve direito a elogios de Lula da Silva, há a registar a presença de técnicos portugueses no campeonato do Amazonas. Fernando Lage, Luís Miguel e, sobretudo, Paulo Morgado, que está até hoje no Brasil e conhece a realidade local como poucos.

O Maisfutebol conversou, por isso, com Paulo Morgado sobre esta aposta do Cruzeiro em Paulo Bento. O técnico assumiu a surpresa de ver um colega «com o nível» de Paulo Bento a assumir uma aposta no futebol brasileiro mas acredita que é uma «boa oportunidade» para ambas as partes.

«É um clube bom, sério, não costuma falhar nos salários e é organizado. Além disso, a própria zona onde se insere é boa para um europeu. Se fosse um clube do norte ou mesmo de São Paulo seria mais difícil a adaptação», considera.

E explica porquê: «No sul o futebol é mais aguerrido, tem mais dinâmica, é mais comparável ao futebol da Europa. Acho que ele não vai ter dificuldades em fazer um bom trabalho.»

Paulo Morgado está há vários anos no Brasil

Os 7-1 que mudaram a forma de os brasileiros verem os treinadores

A aposta do Cruzeiro em Paulo Bento não surge do acaso. Não só a experiência do técnico ao serviço do Sporting e da seleção nacional é um ótimo cartão de visita, mas também simboliza o passo em frente que o país quer dar no que diz respeito ao treino desportivo.

«Ao contrário de outros tempos, aqui no Brasil já todos perceberam que o nível do treino na Europa é superior», diz Paulo Morgado.

A vergonha do último Mundial, com os famosos 7-1 às mãos da Alemanha, abalou todo o país e muita gente pede mudanças. Importar treinadores é uma das medidas.

Mas não qualquer um. «A maior parte dos clubes, quando vai buscar estrangeiros escolhe os países vizinhos, como o Chile ou a Argentina. A Europa é um mercado ainda por explorar. Nesse sentido, Paulo Bento pode vir abrir portas», defende.

«Devido, sobretudo, ao trabalho do Mourinho e do Villas-Boas, que são os mais falados por cá, o treinador português é sempre bem visto. Não tenho dúvidas que, se Paulo Bento tiver sucesso, muitos outros vão tentar apostar em treinadores europeus. Aqui, mesmo nos programas de televisão, diz-se muito que os treinadores brasileiros não querem evoluir, não querem estudar, acham que sabem tudo», conta.

O escândalo do Mineirão abalou todo o futebol brasileiro

«Em 2014 Paulo Bento disse-me que não se imaginava no Brasil»

A bola agora está do lado de Paulo Bento. Sentirá as naturais dificuldades de adaptação, acredita Paulo Morgado, porque o futebol brasileiro continua a ser diferente do europeu.

Mas a escolha do Cruzeiro pode ajudar, como se disse. Uma relação que servirá de muleta aos dois. Cruzeiro ajuda Paulo Bento e Paulo Bento ajuda Cruzeiro…e futebol brasileiro.

«Vai trazer metodologia nova a um país em que a maioria dos treinadores ainda trabalha como aí [Europa] há 10 ou 15 anos. Acredito que traga parte da equipa técnica que conhece bem. São pessoas atualizadas, conhecedoras. Vai fazer um bom trabalho de certeza», vaticina Paulo Morgado.

Lidar com interferências (e Paulo Bento tem fama de não gostar nada delas) é algo que poderá ter de resolver. «No Brasil há sempre gente a tentar dar conselhos», diz o compatriota.

Paulo Bento terá de impôr o seu estilo no Brasil

«Na Europa os diretores não dão dicas, nem opiniões. Costuma dizer-se que os treinadores nem gostam de falar de futebol com dirigentes. Mas aqui vai ser diferente, certamente, e o Paulo Bento, que costuma ser pouco flexível, terá de saber gerir isso», alerta.

E, para o final, conta uma história curiosa que prova como o mundo dá muitas voltas. Paulo Morgado esteve com Paulo Bento aquando da passagem de Portugal por Manaus, para o jogo com os EUA no Mundial 2014.

«Brinquei com ele a dizer que gostava de o ver cá, mas ele disse-me: acho muito difícil vir treinar para o Brasil…»

O que vai encontrar Paulo Bento no Cruzeiro?

Além de perceber o que Paulo Bento pode acrescentar ao Cruzeiro, o Maisfutebol tentou, também, conhecer melhor a equipa que irá parar às mãos do ex-selecionador nacional.

Henrique Fernandes, comentador do canal SporTV, traçou-nos o retrato: «Paulo Bento irá encontrar um Cruzeiro reformulado em relação à equipa que foi bicampeã brasileira em 2013 e 2014, sobretudo no setor do ataque. O elenco atual é repleto de jovens promessas que precisam de amadurecimento como o trinco Romero (21 anos), os médios Arrascaeta (21 anos), Élber (23 anos), Alisson (22 anos) e Marcos Vinícius (21 anos) e os avançados Judivan (20 anos) e Douglas Coutinho (22 anos). Todos com potencial. Um dos objetivos de Paulo Bento precisa ser amadurecê-los como jogadores.»

A defesa será o setor que menos preocupações dará ao técnico luso, onde há boas opções e bons números, mesmo que Dedé e Manoel, os dois centrais principais estejam lesionados, nesta altura.

«Outro trabalho é recuperar a força como mandante, algo que diferenciava a equipa que foi bicampeã. Em 2015 e 2016, o Cruzeiro perdeu muito da sua força quando joga em casa», frisa Henrique Fernandes. Para isso, há a promessa de ir buscar reforços assim que abra o mercado europeu.

No entender do comentador, o Cruzeiro não parte como favorito ao título no Brasil, mas será sempre candidato a um lugar que dê acesso à Taça Libertadores. O resto, só a competição o dirá.

«A grande dificuldade que Paulo Bento deve ter, no entanto, é em relação ao conhecimento sobre o futebol brasileiro. Características dos clubes, estádios, estilo de arbitragem e jogadores do futebol daqui. Há muitos detalhes para o treinador português aprender e isso pode ser complicado com o campeonato em andamento», encerra.