O Kaiser era nosso! Assim mesmo, em estrangeiro, mordendo os lábios até fazer sangue, para contrariar o gosto que todos temos em dizer mal de nós. Quero ultrapassar a história, que sempre nos exige vinte ou trinta anos antes de as letras serem desenhadas e secarem debaixo dos dedos negros dos monges de Umberto Eco. Digo-o com os decíbeis que esta voz me permite: o Kaiser, não o original, mas este que não envergonha ninguém, era nosso! É, ainda é, embora já só uma parte.

Defender, por enquanto. Com classe, controlo. Nada passa, fileiras cerradas, cimentadas pela vontade. É ele que a sustém, ali no coração da defesa, é ele que coordena os momentos em que se respira para que não desabe. Aguenta as investidas até ao limite da dor, até à altura em que é preciso reagir. Custe o que custar. E desce agora, bandeira na mão, pisando adversários em trote. Mártir e herói, figura de Hollywood, Platoon com final feliz. Até ao fim!

Perdoem-me a linguagem bélica, mas com tanta discussão em torno de «mercenários» e «desertores» o cenário Matisse não ficava nada bem... Esqueçam! Kaiser era o alemão, o Franz, e o nosso. Um tal rapaz de Amarante, que andou por Leça, Setúbal, Alverca, Porto, depois Londres, por fim Madrid. Usou vários números, camisolas, cortou golos com melhor ritmo do que o maior goleador os marca. Foi talvez o maior dos últimos anos, e ninguém o sente. Sim, o maior! Repito.

Foi líder. Mais em campo do que fora dele. Cometeu erros, também muitos mais depois de descalçar as botas. E, por um deles, aquela leveza dentro de campo ameaça desvanecer-se. Diluir-se, evaporar-se. O azul Chelsea e o azul Porto vêem-se mais baços, o branco Real transparente e ainda debruado a dourado, o vermelho que vem da bandeira quase anémico. Kaiser - assim mesmo, palavra a preto-e-branco, como os grandes que fizeram história - já não será desenhada nas páginas que o velho gordo, iluminado por uma vela na penumbra, lhe dedica.

Leal, duro e agressivo; mas leal. O último a cair, o primeiro a levantar-se. Sempre no sítio certo, no momento certo, nunca em contra-pé. O líder, já disse? Aquele que não pediu para ser, não quis ser, mas também não recusou. Um líder a quem faltou ambição, mais egoísmo talvez, para crescer uns centímetros até ser inequívoco. E agora é tarde.

Este texto não é para Paulo Bento. Não quero que mude, ou sequer repense alguma coisa. É para todos, sobretudo para o Ricardo. Esta é a página desenhada que levo escondida para trocar com o velho careca e quase cego, o meu pequeno contributo para tentar emendar a história. Para que outros não esqueçam quem ele ainda é.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, sub-director Maisfutebol. Pode ver o seu BLOG e segui-lo no TWITTER