Eu sou do futebol de barro. O futebol de sangue, suor e honra.

Vim do futebol de rua. Dos baldios. Dos tackles nas ruas de gravilha. Do alcatrão. Dos calhaus a fazer de postes, enquanto os carros estão parados no meio do parque de estacionamento.

Nessa altura ninguém os atirava, aos calhaus não aos carros, porque deles precisávamos para as balizas.

Os bonés yankees também serviam para isso. Para mim, só serviam para isso.

Lá estávamos a encharcar as meias de pó de tijolo, como se tivéssemos decidido imitar Djokovic a salvar match points no meio de Roland Garros. Mas o jogo era outro.

Tentávamos desviar a ansiedade do golo-da-nossa-vida da direcção dos vidros caríssimos, esses alvos intrometidos, para os nossos pais de classe baixa. O quanto eles nos insultavam depois de fazer contas à vida! 

Fugíamos aos contínuos, esses empregados do inferno, para jogar atrás dos pavilhões, dando ritmo às aulas aborrecidas que se desenrolavam por detrás.

Estávamos no campo quase até deixar morrer de tédio o primeiro toque, e desatávamos a correr adivinhando, como quando acordamos antes do despertador, que o segundo estava quase a soar. E a falta aparecer na pauta. As desculpas. Os ralhos. Os castigos. 

Desculpe, s'tora!

A camisa cheia de foles encolhia os ombros e pegava na borracha. 

Íamos suados para Físico-Química. Desgrenhados para Matemática. Ofegantes para Geografia. Sem fala para Português. E colocávamos a bola debaixo do pé, por baixo da secretária, na fila mais próxima da porta, à espera do gongo. Para sermos salvos.

Pedíamos dispensa às cambalhotas. Aos pinos. Às pontes. Aos jogos com as miúdas. 

Deve ser uma gastroenterite, s'tor!

Se calhar vem daí...

Depois conduzíamos a bola freneticamente do lado de fora do pé, fintando, endiabrados, pais, alunos e figurantes para ganhar tempo e chegar antes da hora do lanche. Antes. Dez. Quinze minutos e atirar ainda uns remates ao ângulo das goteiras nas traseiras do prédio.

Imaginávamos Goyco a defender os nossos penalties imaginários, a tentar partir ainda mais rápido do aquele golo de Brehme. Vezes sem conta, até defendê-lo.

Toma lá!

Os nossos filhos desenham jogadas a régua e esquadro nas consolas. Golos que apenas são possíveis de imaginar. Sonham ainda mais acordados, porque já se cansaram de esperar que aconteça alguma coisa do lado de fora da janela.

As ruas desertas. Desapareceram os bigodes farfalhudos aos gritos de ai-se-vos-apanho, de mãos na cabeça com os olhos postos no cautchú e nas couves grosseiramente partidas para um caldo verde antes de tempo.

É um medo diferente este. Que os apanhem e os levem. Que os assaltem. Que lhes façam mal. Que as  Mentes Criminosas no nosso subconsciente se tornem realidade e deixem de aparecer à frente apenas dos outros.

O futebol deixou as ruas para os carros, que sacrilégio. Saiu das escolas de ensino, e entrou nas de futebol, onde ex-jogadores tentam criar clones do seu talento, prolongando a bola a saltitar perto de si. A eterna luta do homem com o tempo.

O jogo passou a ter espartilhos de adultos em idade de criança. As camisolas dentro dos calções. As botas coloridas, berrantes, a pontuar meias esticadas até aos joelhos. Os penteados simétricos. Os equipamentos de gala, que mais tarde irão tapar tatuagens dos que não aceitam tamanha rigidez. Dos rebeldes que aceitaram ser reinsercidos na sociedade para ganhar o pão, e que precisam de um escape para se expressar. 

A paz, o pão, a habitação!

As tácticas. As movimentações. Os triângulos. A harmonia. O discurso imitado aos outros. Penteadinhos, bonitinhos, bem-comportados.

Os estádios são anfiteatros, coliseus preparados para música clássica, com os tempos certos, sem desafinar. Ou para saborear o peso de cada palavra numa peça de Shakespeare.

Os relvados escoam inundações, aguentam intempéries. Não há ponta de lama. Não há calções sujos de barro.

Lá no meio, 22 peões, todos arrumadinhos, bonitinhos, penteadinhos, a pôr em prática os textos que decoraram, com a voz projectada a chegar à última fila. As fintas repetidas mil vezes até saírem perfeitas.

E entre as gotas da chuva um ou dois que dobram as regras ao seu jeito. A força da gravidade. As linhas rectas. Ganhando todas as negociações de espaço e tempo. Um ou dois que dobram a colher perante o olhar incrédulo de Keanu Reaves

You’re The One!

Sou do futebol de barro, de sangue, suor e honra. E hoje deu-me a saudade, até o cúmulo das coincidências me deixar perplexo:

Vamos lá para baixo, pai! Jogar à bola!

Cuidado com os vidros!


--
«ERA CAPAZ DE VIVER NA BOMBONERA»    é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias. Pode segui-lo no    FACEBOOK        e no    TWITTER   . O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.
--