«O racismo ainda existe em todo o mundo. Mas o Milan voltou a mostrar ser um clube inovador, corajoso e à frente do seu tempo». As palavras foram ditas por Clarence Seedorf, na primeira conferência de imprensa como técnico do Milan, e eram uma resposta ao facto de ser o primeiro treinador negro na história da Série A (ou quase, já lá vamos). O holandês assumiu há dez dias o comando do plantel com mais «black power» na história do clube: a contratação de Essien, confirmada nesta segunda-feira, eleva para nove o número de jogadores negros à disposição do técnico, igualando um máximo fixado no ano anterior.

O orgulho de Seedorf no currículo integrador do clube de Milan parece genuíno, até porque este é para ele um tema sensível. Enquanto jogador, o holandês, oriundo do Suriname, apadrinhou várias iniciativas destinadas à juventude e tornou-se ativista no combate à descriminação, com a bênção da Fundação Nelson Mandela, depois de um encontro com o líder africano em 2009.

E é verdade que, durante os últimos meses, o Milan esteve várias vezes no centro de denúncias a comportamentos racistas no futebol italiano. Em janeiro do ano passado, por exemplo, a equipa abandonou o relvado durante um jogo de preparação com o Pro Patria, depois de adeptos desta equipa terem dirigido cânticos racistas a Kevin Prince Boateng, que reagiu desta maneira:



Sete meses depois, a cena repetiu-se num particular de pré-época com o Sassuolo: o alvo, desta vez, foi o francoguineense Kevin Constant, que também interrompeu o jogo em protesto com os cânticos dos adeptos. Desta vez, porém, a equipa não deixou o terreno de jogo: o técnico Massimiliano Allegri limitou-se a substituir o jogador visado.



Mas, apesar dos elogios de Seedorf, nem sempre os adeptos do Milan, e os seus próprios dirigentes, nem sempre têm estado do lado das vítimas. Em fevereiro do ano passado, poucos dias depois do incidente com Boateng, Paolo Berlusconi, irmão de Silvio e vice-presidente do clube, causou furor ao encerrar um encontro político pré-eleitoral com uma frase alusiva à estreia de Balotelli, recém-contratado ao Man. City: «Agora vamos todos ver o pretinho da família, o maluco. E todas as raparigas estão naturalmente convidadas, pode ser que tenham hipótese de conhecer o presidente».



E, já no decorrer desta época, o Milan foi por duas vezes sancionado pela Liga italiana, por comportamentos racistas, ou discriminatórios, dos seus adeptos, durante os jogos com o Nápoles (em setembro) e com a Juventus (outubro). No primeiro caso, os cânticos dirigiam-se especificamente aos napolitanos, tratados como «raça inferior» em várias regiões do norte de Itália, com cartazes como o recentemente exibido pelos adeptos do Bolonha: «Será um prazer quando o Vesúvio cumprir o seu dever».



Já na visita a Turim, os cânticos do setor visitante tinham como destinatários os jogadores da Juve Asamoah e Pogba – apesar de o Milan ter utilizado seis jogadores negros nessa partida. Entre as reações indignadas de dirigentes «rossoneri» contra as sanções disciplinares, contaram-se as do administrador delegado Adriano Galliani, mas também do eurodeputado Matteo Salvini, da Liga do Norte, que criticou as autoridades desportivas italianas por se centrarem em «cânticos, cartazes e faixas em vez de combaterem a violência».

Na mesma altura, o presidente da Juventus, Andrea Agnelli, dava uma entrevista à CNN onde, fugindo a criticar diretamente o Milan, dava conta das especificidades culturais italianas que, em sua opinião, dificultavam o combate ao racismo, ao mesmo tempo que tornavam as denúncias mais frequentes: «Em Itália há uma situação única, porque uma coisa são atitudes racistas, outras descriminações territoriais. Muito do que acontece atualmente é uma peculiaridade do nosso regionalismo. Muitos destes cânticos passaram despercebidos durante 25 anos e agora voltam a estar em evidência, a pretexto de uma luta justa liderada pela UEFA, e apoiada pela federação e os clubes», afirmou então o dirigente da «vecchia signora».

Curiosamente, quando jogava no Milan, o próprio Seedorf contribuiu, há quatro anos, para esvaziar um pouco o balão da indignação, pedindo para não se rotular da mesma forma todo o tipo de insultos proferidos pelos adeptos. A propósito de uma polémica surgida com Balotelli, quando este representava o Inter, o seu atual treinador foi contundente: «Ele não é insultado pela cor da pele, mas pelo seu comportamento. Isso não é racismo. Se eu nunca tive problemas com adeptos e ele tem, é porque há outros fatores, como o do seu comportamento. Gestos como o de mandar calar o público são provocações, e resultam em insultos, que se devem ao que faz, e não à pele que tem», afirmou. Agora, Balotelli é quatro anos mais velho e está do seu lado.

Formalmente, Seedorf não é bem o primeiro negro a assumir o comando de uma equipa da série A: no início deste verão, o antigo internacional italiano Fabio Liverani, que tem ascendência somali, aguentou quase três meses no comando do Génova, antes de sucumbir aos maus resultados. Mas estas polémicas, tal como o simbolismo da aposta do Milan em Seedorf, devem ser enquadradas num contexto muito específico.

Só em 1962, com a tripla contratação de Germano (Milan), Jair (Inter) e Cané (Nápoles) os adeptos italianos começaram a ver jogadores negros nos relvados. E o fecho das fronteiras a jogadores estrangeiros, decretado em 1966 e revogado em 1980, manteve essa realidade afastada dos estádios durante mais tempo do que nos outros grandes campeonatos europeus.

Só a partir do final da década de 80 se tornou frequente a presença de jogadores negros nas principais equipas do «calcio». O Milan, por exemplo, ganhou rapidamente uma série de referências ilustres, como Rijkaard, Gullit, Desailly, Weah, Dida, até desembocar no estatuto intocável de Seedorf como estrangeiro com mais partidas pelos «rossoneri».

Mas, ainda assim, os sinais de choque cultural continuam a abundar: poucas coisas terão mais simbolismo do que o facto de Kevin Prince Boateng ter assumido, em setembro, que optou por jogar num clube alemão para evitar o clima racista que predomina na maior parte dos estádios da série A.

Claro que o problema não se esgota em Itália: a escassez de treinadores negros é uma questão praticamente universal, na Europa e também no Brasil, onde ainda há pouco tempo Seedorf participou num debate televisivo sobre o tema. Um estudo recente em Inglaterra dava conta de que, nos 92 clubes profissionais das Ligas, havia lugar para apenas quatro treinadores negros - apesar de a percentagem de jogadores negros estar há vários anos perto dos 30 por cento do total. E em Portugal os números não serão muito diferentes destes. Mas, ainda assim, na atualidade só alguns países de Leste podem rivalizar com a Itália no registo de incidentes com adeptos e jogadores, de indisfarçáveis conotações racistas.

«Em algumas coisas temos um atraso de 40 anos. Temos de lutar por uma mudança cultural, e isso exige tempo e vários passos na mesma direção», admitiu Agnelli, por ocasião das polémicas de outubro. Também por isso, a presença de Seedorf num dos cargos mais mediáticos da vida italiana, liderando uma equipa onde, do japonês Honda a Balotelli, passando por El Shaarawy ou Kaká, o talento se conjuga com todas as cores, será um dos testes mais representativos à mudança de mentalidades.