A visita do Beira-Mar a Sporting é uma boa desculpa para redescobrir um feito heróico. A primeira e única vitória dos aveirenses em Alvalade tem ares novelescos e é digna de adulação. 1971/72, 0-1 e o golo apontado de calcanhar. Por um jogador que haveria de se tornar glória da nação... benfiquista: Nelinho, o Expresso da Luz.

Desafiado pelo Maisfutebol a desterrar o passado e a desempoeirar o argumento de uma carreira portentosa, Nelinho agarra-se à memória e não mais a larga. A convicção das suas palavras é um guia assertivo e confiável.

«Perto do final da primeira parte, surjo em frente ao saudoso Vitor Damas e marco à Madjer. O Beira-Mar tinha subido de divisão e era impensável pensar numa vitória dessas», conta o antigo extremo, agora com 63 anos e proprietário de duas lojas no Bairro da Boavista: «uma padaria e uma barbearia, faço pão e corto cabelo».

Nelinho, curiosamente, até era sportinguista. Até viver por dentro o universo do Benfica de «Nené, Simões, Vitor Batista, Eusébio, Jordão e Artur Jorge». Foi contratado por 1500 contos - «uma fortuna» - ao Palmense, detentor do seu passe.

«É verdade, andavam todos atrás de mim. Benfica, F.C. Porto, Sporting, todos. Esse golo em Alvalade, de calcanhar, ajudou-me a projectar a minha imagem. Fui marcado pelo Hilário, mas fiz um jogo extraordinário. Creio que o Beira-Mar actual tem mais hipóteses de empatar ou vencer do que nós tínhamos na altura.»

Salários: 22.500 escudos na Luz, 95 mil em Braga!

Conversar com Nelinho é saltar irremediavelmente para as primeiras páginas do futebol português da década de 70. As perguntas são desnecessárias. O ex-internacional português - «quatro vezes porque não havia jogos amigáveis» - fala das «enormes saudades» que tem da vida de futebolista.

«Repare bem. Fui ganhar 22.500 escudos [112,5 euros] para o Benfica. Joguei pronto nas duas primeiras épocas e fui emprestado ao Orense. Lá pagavam-me 100 mil escudos mensais. Voltei ao Benfica, fui titularíssimo com Mário Wilson e John Mortimore e nunca me aumentaram.»

«Um dirigente chamado Romão Martins, responsável pelo declínio do clube, até me queria baixar o soldo. Enfim, o contrato acabou ao fim da quinta época e mudei-me para o Sp. Braga. Fui para o Minho ganhar 95 mil escudos por mês. Um luxo.»

Uma criatura misteriosa chamada Pinto da Costa

Falar apenas de dinheiro no percurso de Nelinho é redutor. Este excelente jogador tem relatos sem fim na ponta da língua. E até o improvável Pinto da Costa, por ser do F.C. Porto, tem um lugar especial nas reminiscências deste conversador nato.

«Certo dia, no Sp. Braga, um dirigente novinho veio ter comigo. Fizeste muito bem em sair do Benfica. Muito bem mesmo. Estás feliz aqui? Eu tinha acabado de marcar um golo ao F.C. Porto. Disse que sim, que estava muito feliz. Ele abraçou-me e foi embora.»

A identidade da misteriosa criatura só mais tarde foi revelada. «Disseram-me que era o novo chefe de departamento de futebol do F.C. Porto. Isto em 1978. Até estive para ser jogador do Porto anos antes, mas optei pelo Benfica.»

Antes da despedida, o espirituoso Nelinho desabafa-nos sobre uma tragédia recente na sua vida familiar - a morte de um filho - e faz questão de se despedir com mais uma ideia. «Sou adepto do Benfica, do Beira-Mar e do Sp. Braga. Por esta ordem. Por isso, já sabe, vou estar em Alvalade a puxar pelo meu amor aveirense.»