Deixemos desde logo claro que esta é uma análise de um fã incondicional do actual treinador do Manchester City. Dos seus erros, das suas decisões difíceis de descodificar e da sua capacidade em assumir riscos. É este último ponto que o coloca simultaneamente tão perto da admiração quanto da crítica. E é esse mesmo motivo que fez desaparecer o City treinado por Manuel Pellegrini e aparecer o City de Pep Guardiola. Podia ser apenas uma questão de linguagem, mas é uma questão de identidade. O catalão continua a confundir-se facilmente com as suas equipas e estará sempre mais exposto à ditadura dos resultados, um papel em que se sente confortável desde o primeiro dia no Etihad.

Guardiola chegou, viu e agiu. O treinador espanhol, assim que pisou as Terras de Sua Majestade, riscou os nomes que não entrariam nas suas contas, elevou outros rapidamente a titulares indiscutíveis e deixou na fronteira uma pequena parte que continua com futuro indefinido. Se os príncipios de jogo já estão bem espelhados (sim, mesmo no lance que abriu o marcador frente ao  Manchester United: acabou à britânica, mas iniciou-se numa tentativa de sair a jogar pelo número 1 e com bola longa de recurso de Kolarov após sentir-se pressionado) e apenas a necessitar de tempo em competição, as pedras que irão definir o onze base ainda não foram totalmente encontradas. É esse exercício que Pep tem vindo a fazer de jogo para jogo após o ter feito no mercado.

Certezas, incertezas e meias certezas

A coragem, para uns, a blasfémia, para outros, em rejeitar que Joe Hart fosse o titular da baliza dos citizens, ganhou contornos maiores após a exibição danosa de Bravo frente ao rival United. Por regra, não é justo crucificar qualquer jogador por uma prestação menos conseguida, mas choca ainda mais quando se trata de um guarda-redes com o distinto percurso do chileno. O uso do guarda-redes no processo ofensivo tem os seus riscos conhecidos assim como a sua utilidade, sendo a ideia de que os prós superiorizam-se aos contras que leva Guardiola a manter a situação que no Barcelona interpretava com Valdés e no Bayern interpretou com Neuer. Bravo arriscou em demasia para uma estreia e tendo em conta a importância moral e pontual do jogo, mas tem a qualidade necessária para ir apagando esta tarde menos conseguida no decorrer da época e se há algo que esta partida mostrou foi que terá à sua frente dois impressionantes atletas que irão ajudar nessa tarefa: Otamendi e Stones. Aqui não há espaço para dúvidas. A dupla vai ganhando rotinas e ameaça tornar-se um caso sério de entendimento com base na técnica, velocidade de reação e antecipação.

No entanto, é no meio campo que Guardiola assume que ganhará e perderá mais jogos e onde cedo pensou que intérpretes iriam ser responsáveis pela sua obra. Fernandinho ficou com o lugar de maior responsabilidade e com exigências ‘multi-tasking’, ocupando a posição de médio defensivo sem fazê-lo de forma rígida e posicional, mas sim pressionando alto em parceria com a equipa e assumindo a primeira fase de construção (ora tocando curto entre os centrais, ora transportando de cabeça levantada) para libertar os criativos. Os criativos que não poderiam ser outros que não De Bruyne e David Silva, dois jogadores que nos últimos anos também jogaram sobre as faixas em relação aos quais Pep rapidamente fez questão de mostrar que consigo isso não iria acontecer, voltando a defender a filosofia (que vimos, por exemplo, com o arrastamento de Messi) de que os melhores jogadores devem actuar no corredor central, ter mais bola e tomarem as decisões: pensar e executar o jogo da equipa. E é a pensar e executar de maneiras distintas (em condução o belga e em distribuição o espanhol), mas com a mesma qualidade, que ambos nos têm deliciado neste início de temporada, não só a assistir, mas também a marcar, aproveitando os movimentos de aproximação à área.

Nesse sentido, a contratação de Nolito veio acentuar a necessidade do novo City em ter um maior número de jogadores com facilidade de finalização. Ainda que trapalhão e com as debilidades defensivas que levaram Jorge Jesus a dispensá-lo do Benfica, torna-se numa peça útil para uma equipa dominadora que tem a obrigação de passar grande parte do jogo em organização ofensiva. Já Sterling, com posto garantido no corredor direito (pelo menos até que Sané cresça tacticamente), é o verdadeiro agitador da equipa, aquele que consegue mais rapidamente que todos os outros colocar a mão na caixa de velocidades e imprimir a 6ª sem que ninguém dê por ele. Um jogador imprevisível e inconstante que se espera que apareça e desapareça à velocidade da luz sem que isso tenha de ser mau para a estratégia colectiva dos citizens. Lá na frente, como referência, acredito que Kun Agüero sempre foi um desejo de Guardiola, mesmo que se prepare para mais uma temporada em que irá dividir o protagonismo que tem em campo com aquele que tem fora dele devido às lesões que o atormentam. Dá mobilidade vertical e horizontal, tem facilidade em deslocar-se para as faixas, é bastante forte em movimentos diagonais e inteligente no preenchimento do espaços, juntando tudo isto ao faro de golo como poucos a nível mundial. Na sua ausência forçada, Iheanacho irá certamente solidificar-se como um dos grandes avançados do futuro.

Diz-me como queres jogar, dir-te-ei quem és

A sua estrutura, para o bem e para o mal, é sempre a mesma. As dinâmicas, essas, vão tendo alterações, aqui e ali, conforme os jogadores que tem à disposição ao nível da cultura táctica. E são as dinâmicas que dizem quase tudo do que hoje é uma equipa. É por isso que o 4x3x3 de Guardiola continua mais oleado do que a maioria dos restantes 4x3x3 de equipas igualmente bem apetrechadas individualmente.

No conjunto da cidade de Manchester, ofensivamente, são as trocas posicionais entre Sterling e De Bruyne, e David Silva e Nolito, que fazem deste modelo tão difícil de anular. O golo de Sterling contra o West Ham, ao minuto 7, resulta de uma dessas trocas no momento de chegada à área, onde se vê o belga a passar nas costas do inglês (o tão afamado ‘overlapping’) permitindo arrastar marcações e criar isolamento para finalização. A isto, juntamos as transições ofensivas supersónicas da autoria (quase sempre) de Fernandinho, que as transforma rapidamente em contra-ataques aproveitando que a equipa adversária ainda não tenha passado ao momento de organização defensiva. Também a mudança de velocidade na circulação (um nível acima do que fazia no Bayern e dois em relação ao início no Barcelona), adaptada a um campeonato onde as equipas são, regra geral, menos evoluídas defensivamente e organizacionalmente face a Alemanha e Espanha, mostra o lado camaleónico do treinador espanhol. O resto, já conhecemos: muita posse de bola no meio campo contrário, uma pressão asfixiante na tentativa de recuperar depressa o esférico e o mais próximo possível da baliza do oponente e primazia à qualidade técnica (individual e colectiva) demonstrada já nestes primeiros jogos com o facto de quase todos os golos terem proveniência de uma assistência, sinal de comprometimento e altruísmo.

No reverso da moeda aparece a deficiente transição defensiva. O técnico catalão tem muito trabalho a fazer neste capítulo, compreensível face ao facto de estar a testar novas ideias a atacar, mas ainda assim preocupante. Tem sido sempre dessa forma que os adversários do Manchester City criam perigo com grande facilidade, já que no momento de organização defensiva, onde Pep situa a equipa num 4x1x4x1 bem vincado, o entendimento entre todos os elementos já se apresenta num patamar bem aceitável.

O choque perante o vizinho de Manchester, onde dominou durante um maior período de tempo e acabou com uma vantagem que mostra bem o que foi o jogo (principalmente pela fantástica primeira parte de sentido único que teve na intensidade e rotatividade do trio Fernandinho-Silva-Bruyne a chave-mestra), serviu para provar que Guardiola vai manter-se igual a si próprio nos grandes duelos, sem adaptar-se ao adversário para além do necessário, no que diz respeito às suas ideias base. Já as ideias que começaram recentemente a ser trabalhadas, foram colocadas em segundo plano de forma natural, dando a entender que terão de ser aperfeiçoadas em realidades competitivas mais reduzidas, como as partidas em casa e/ou perante adversários de menor valia, antes do seu transfere para a alta competição. Uma delas (testada de forma mais evidente frente ao Sunderland) vai despertando curiosidade, em relação ao que serão os seus resultados práticos, um pouco por todos os treinadores, observadores e analistas de futebol.

«Eat, Sleep, Create, Repeat»

Suponho que seja o lema metodológico da carreira de Pep Guardiola adaptado da música «Eat, Sleep, Rave, Repeat» de Fatboy Slim & Riva Starr. «Comer, Dormir, Criar e Repetir» tem sido o dia a dia do espanhol por todas as equipas que tem passado e no Manchester City promete levá-lo a um extremo sem comparação. Nos ‘Sky Blues’ tem testado uma solução sem precedentes a este nível competitivo: em início de construção, recua o pivot defensivo para entre os centrais (até aqui nada de novo), pedindo aos laterais que se posicionem como um duplo-pivot defensivo e obrigando os extremos, bem abertos nos corredores laterais, a atenção redobrada para reagir à perda da bola. Talvez por querer jogar assim é que ainda não chegou a uma decisão sobre quem serão os laterais titulares, duvidando à esquerda entre Clichy e Kolarov, e à direita entre Sagna e Zabaleta. Esta estratégia dá-nos uma ideia do nível extremo de loucura do seu mentor quando observamos que, em algumas situações, Pep pede ao lateral que está provisoriamente a cumprir o papel de médio defensivo que viaje até ao corredor contrário para se transformar numa segunda linha de passe ao portador da bola, tombando a equipa para um lado. Surreal, incrível e fascinante são as palavras que melhor descrevem um treinador que mais do que qualquer outro tem licença para errar.