Ah, a ironia…
É das coisas mais fascinantes deste mundo. Que o diga o Daniel Carriço.
O ex-defesa-central do Sporting será dos melhores exemplos de ironia no futebol atual, desde que, há exatamente dois meses, assinou pelo Wuhan Zall.
A 20 de fevereiro, o Sevilha anunciou a transferência do português, capitão e vencedor de três Taças UEFA, para o clube da cidade-epicentro da epidemia, onde havia onze milhões de pessoas em quarentena.
A opção de carreira parecia tão insólita que a notícia ganhou até direito a reticências em alguns títulos de jornal: «Daniel Carriço vai jogar no… Wuhan»
Os comentários de adeptos, no Facebook e no Twitter do clube andaluz, não deixavam, porém, grande espaço à subtileza.
«Isto é condená-lo à morte», «Estão a mandá-lo para o matadouro», lê-se, por entre imagens de Bubble Football e hastags como #PrayforCarriço.
«Espera um par de meses até contares os sobreviventes», leio nas reações ao Twitter do Sevilha, em que o nome do clube agora é acompanhado pela mensagem «Yo me quedo en casa».
Tomando como boa a equação «comédia = tragédia + tempo», reler estes reações entre o pânico e o humor nos dias que correm são coisa para nos fazer sorrir.
Há um par de meses, porém, não houve quem não se espantasse com a notícia. Por cá, não faltava quem olhasse de esguelha para tudo o que fosse lojas e restaurantes chineses e achávamos bizarro aquele hábito oriental de andar de máscara na rua, não é verdade?
Havia comunicação social a tratar o corona por vírus da China e médicos de trazer por casa encolhendo os ombros quando perguntados se era mesmo assim em programas da manhã.
Quase tanto como os gráficos das curvas exponenciais de cada país, o caso particular de Carriço seria demonstrativo de que num mundo global um par de semanas é uma eternidade.
Se a 1 de março, o português dizia não arrepender-se da sua arriscada escolha, quinze dias depois já o Wuhan Zall deixava o estágio em Espanha para regressar à China, evocando razões de segurança sanitária.
No último domingo, a equipa regressou finalmente a Wuhan. Aterrou num voo vindo de Shenzhen, percorreu o átrio do aeroporto com direito a uma pequena receção e anunciou que regressará aos treinos já esta quarta-feira.
Ou seja, tudo coisas que nenhuma equipa de futebol agora pode fazer por cá.
Ao contrário do Wuhan, o Sevilha agora não tem data para voltar ao trabalho. Nem Barcelona, Real Madrid, FC Porto, Benfica, Juventus ou Manchester United.
Episódios como este servirão para nos recordar como o futebol pode ser uma metáfora da vida, dando-nos o pretexto para sermos menos sobranceiros e colocarmo-nos mais nos sapatos do outro.
No fundo, entre os provérbios que a minha avó me ensinou há sempre um que serve a cada ocasião. Neste caso: «Não te rias do teu vizinho, que o mal vem pelo caminho.»
Fosse caso para isso e Carriço agora riria por último. Já agora, felicidades em Wuhan e um conselho: pelo sim, pelo não, que evite o mercado de frescos.
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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.